“O que é ser um jornalista de rua?”
Uma aluna do curso de
comunicação social da Universidade da Amazônia (Unama) me fez esta
pergunta, pela qual tanto esperava, durante uma palestra. Ela se referia
a uma declaração anterior que fiz. Lamentei a ausência de repórteres na
linha de frente dos acontecimentos, enquanto a retaguarda da imprensa
está congestionada.
Antes da obrigatoriedade do
diploma do curso superior de comunicação social para o exercício da
profissão de jornalista, qualquer candidato a um posto na redação era
mandado primeiro para trabalhar na cobertura de polícia. Era uma
iniciativa sábia.
O “foca” sofria o impacto
dos fatos que passava a cobrir, como assaltos ou assassinatos, mas o
contato direto com as pessoas desenvolvia seu senso de observação, a
capacidade de apuração de informações, a ousadia, a criatividade e o
mais importante: a identificação do que constituía a matéria prima do
jornalismo. Dentre tantos dados que anotava, precisava identificar
aqueles que integrariam a notícia.
A cabeça de um jornalista,
como de outros profissionais que lidam com a dinâmica dos
acontecimentos, funciona em duplo movimento. Enquanto capta informações
precisa ordená-las, selecionando o que merece destaque e organizando o
futuro texto que ainda irá escrever.
Um bom repórter chega à
redação com sua matéria já concebida. Ao começar a redigir, seus
desafios são abrir bem o texto, com dois ou três parágrafos fortes, que
atraiam e mantenham a atenção do leitor, e um final que deixe um gosto
de quero mais, de disposição do leitor para o que virá no dia seguinte,
na suíte da matéria inaugural.
Contato indireto
O acerto desse procedimento
tinha um inconveniente: o jornalista passava a confiar apenas nos
instintos, no seu faro para as informações novas, importantes,
relevantes, curiosas ou interessantes. A história começava e terminava
todos os dias sem que ele aprimorasse o entendimento dos fatos
aparentemente isolados, singulares, sem qualquer encadeamento.
Um repórter à antiga tem a
malícia necessária, depois de anos a lidar com todo tipo de gente, nas
mais imprevisíveis situações. Ele conhece traficantes de drogas e as
maiores autoridades públicas, pessoas dignas e canalhas, tem fontes em
todos os lugares e já passou por boa parte deles. Mas, a partir de certo
momento da sua carreira, começava a se embotar, se repetir, perdia a
sensibilidade para as mudanças e, sobretudo, não ia além do que via.
Para evitar essas
deficiências era preciso se reciclar. Aprender, refazer suas formas de
percepção. Na velha redação havia poucos profissionais dispostos a
aceitar esse desafio da sistematização do conhecimento, do aprendizado
daquilo que constitui o acervo do pensamento humano, por meio da
reflexão que as melhores cabeças fizeram e nos legaram através dos meios
de transmissão, em especial o livro, e do melhor local para absorvê-las
(ao menos em tese), as universidades.
Apesar dessa limitação
estrutural, digamos assim, havia grandes jornalistas. A razão estava num
hábito arraigado desses profissionais: ler muito, ter uma curiosidade
inesgotável. Por seus dons naturais e pelo exercício da leitura, eles
chegaram às bordas da literatura – e vários deles cruzaram essa
fronteira demarcadora e intransponível para a maior parte dos
jornalistas. É por isso que, mesmo lidando com a elaboração de textos
diariamente, eles não são escritores e, a rigor, nem intelectuais. São
os profissionais dos faits-divers, de um brilho efêmero, que raramente sobrevive à circulação da publicação onde escrevem.
A formação acadêmica imposta
a partir da norma legal estabelecida, através do ditatorial
decreto-lei, pela Junta Militar, em 1969, abriu as portas do saber
organizado e sistematizado para os novos jornalistas. Mas os confinou em
cubículos e os despejou para a cozinha da imprensa. É o lugar no qual
manejam seus computadores, têm contato indireto com as fontes e lidam
com realidades virtuais. É frequente que nem conheçam suas fontes ou
jamais presenciem ou testemunhem sobre os fatos aos quais se reportam.
Imprensa encolhida
O jornalismo perdeu vida,
sangue, nervos e a sua maior significação. Não é esperado e nem mesmo
desejado que o jornalismo ocupe um lugar melhor preenchido pela
literatura, a sociologia, a psicologia ou a ciência política. É
lastimável, entretanto, que renuncie ao seu lugar próprio e justo de
jornalismo. Isso ocorre quando os repórteres deixam de estar ao lado dos
episódios relevantes do cotidiano, dos imprevistos do dia a dia, dos
acontecimentos mais significativos.
Ao invés de serem
testemunhas e olheiros da roda concreta da história, são porta-vozes de
personagens, repetidores de conhecimentos que recebem prontos e
acabados, burocratas da compilação de dados. Vão se tornando cada vez
mais estáticos, distanciados da dinâmica social, atados às pautas dos
seus chefes.
Essa deficiência tem uma
ênfase ainda mais danosa na Amazônia. Sua condição de fronteira resulta
em novos acontecimentos permanentemente, mudanças constantes, dispersão e
deslocamento de atividades e pessoas. Como as empresas jornalísticas
reduziram ao mínimo seu investimento em viagens, que poderiam levar seus
repórteres aos locais onde realmente a história pulsa e acontece, o
resultado é esse círculo vicioso em torno das mesmas informações, da
padronização da cobertura jornalística, da quadratura do círculo.
Os novos donos da Amazônia
querem continuar a explorá-la da forma vergonhosa como se têm conduzido.
Essa imprensa encolhida, retraída ou acovardada lhes facilita essa
missão colonial.
Texto extraído do Observatório de Imprensa. Autoria de Lúcio Flávio Pinto, jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)
Nenhum comentário:
Postar um comentário