Em 16 de maio, entra em vigor a Lei de Acesso a Informações Públicas
(Lei nº 12.527, de 18/11/2011). Dá-se como certo que o Estado brasileiro
não tem nem ferramentas nem cultura para cumprir o disposto na lei:
foi, em outras palavras, o que declarou o ministro da Controladoria
Geral da União, Jorge Hage, à Agência Brasil (17/4). Hage disse que na
data prevista nem tudo estará funcionando integralmente, porque foi
curto o prazo de seis meses dado para a preparação da máquina estatal –
ele entende que o prazo deveria ter sido de dois anos.
Nesta entrevista ao Observatório da Imprensa,
feita por e-mail, a arquivista francesa Perrine Canavaggio diz que para
vencer a resistência da administração à aplicação da lei é preciso,
entre outras medidas, designar responsáveis por sua aplicação num nível
elevado de responsabilidade e publicar seus nomes e formas de contato
nos sites dos organismos.
A Lei de
Acesso à Informação dispõe sobre o acesso a dados dos órgãos públicos em
todas as esferas: nos casos do Executivo e do Legislativo (incluindo os
tribunais de contas), esferas federal, estadual e municipal; no caso do
Judiciário, federal e estadual. Também deverão fornecer informações o
Ministério Público e “as entidades privadas sem fins lucrativos que
recebam, para realização de ações de interesse público, recursos
públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais,
contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou
outros instrumentos congêneres”. O mesmo prazo para entrada em vigor da Lei de Acesso foi dado ao Poder Executivo para regulamentá-la.
Será difícil negar acesso
A lei garante o acesso de “qualquer interessado” a informações não
protegidas por sigilo. Caso o órgão ou entidade pública não conceda
acesso imediato, terá prazo de 20 dias, prorrogáveis por mais dez, para
apresentar a informação, dizer por que não a fornecerá ou que não está
de posse dela. O requerente terá dez dias para apresentar recurso à
instância hierárquica imediatamente superior. Se a pendência não for
dirimida, poderá dirigir-se
à Controladoria Geral da União, que terá cinco dias para se pronunciar.
Caso a CGU mantenha a negativa, o interessado poderá recorrer a uma
Comissão Mista de Reavaliação de Informações cuja criação é prevista na
lei. Evidentemente, a burocracia aprenderá rapidamente a driblar toda
essa teia de proteção ao interessado na informação, até que os cidadãos
criem seus próprios instrumentos de pressão.
Atualmente, as informações mais
requeridas nos Arquivos Públicos do país são 1) documentos que comprovam
ascendência estrangeira do requerente, com o objetivo de obter
passaporte de outro país ou por curiosidade a respeito da origem
familiar do indivíduo; 2) dados cartoriais referentes a terrenos e
imóveis, para comprovação de propriedade ou posse. Pesquisadores
acadêmicos também procuram acervos ricos em documentos sobre
determinados períodos e/ou regiões.
153 anos sem direito de acesso
O Arquivo Nacional foi criado em 1838,
mas só 153 anos depois, em 1991, o acesso aos documentos conservados
nele e nos demais arquivos públicos ou de interesse público do Brasil
ganhou amparo legal, na lei nº 8.159, sancionada pelo então presidente
Fernando Collor. A tentativa de dotar o país de uma lei de arquivos
havia começado em 1962, durante a gestão do historiador José Honório
Rodrigues no Arquivo Nacional, fora retomada quando Celina do Amaral
Peixoto assumiu o cargo, em 1980, e se fortalecera com a aprovação da
Constituição de 1988, na qual aparece pioneiramente a figura do habeas data.
Entre muitas consequências relevantes do
tipo de transição que o poder militar impôs à nação brasileira está uma
espécie de tabu em relação à abertura dos arquivos da ditadura (os que
não foram destruídos). Em 27 de dezembro de 2002, Fernando Henrique, a
cinco dias de passar a faixa para Lula, assinou um decreto (nº 4.533)
que detalhou como deveriam ser tratados os papéis considerados
sigilosos. FHC aumentou para 50 anos o prazo para abertura dos dados e
informações considerados “ultrassecretos”, prorrogável indefinidamente
(esse prazo era de 30 anos na lei de 1991, renovável por igual período).
Não se tratava de proteger a
passada ditadura, mas documentos das Forças Armadas, do Ministério das
Relações Exteriores, relativos a questões tecnológicas sensíveis e outros interesses do Estado brasileiro.
Em 2004, Lula, com o decreto nº 5.301,
reduziu o prazo para 30 anos, mas manteve a possibilidade de se renovar
indefinidamente o sigilo. Só com a Lei nº 12.527, elaborada durante o
segundo governo Lula, aprovada no Congresso Nacional e sancionada por
Dilma Rousseff, foi o prazo reduzido para 25 anos, prorrogáveis uma
única vez. Um avanço em relação a 1991: 50 anos de prazo máximo, em
lugar de 60 anos. O prazo para abertura de informações pessoais
consideradas reservadas é de 100 anos, seguindo praxe internacional.
Oligarquias locais
Em coluna na Folha de S. Paulo,
Fernando Rodrigues, depois de mencionar obstáculos na esfera federal,
escreve que “nos estados e nas cidades a situação é pior” (ver “Acesso ainda sem regra”).
E explica: “Embora a Lei de Acesso seja clara, vários governadores
consideram que a regra não é autoaplicável. Ou seja, as Assembleias
Legislativas teriam de aprovar legislações locais. A prevalecer essa
lógica, o país demorará uma vida até a transparência pública
disseminar-se em todos os níveis de governo.”
Em artigo na Época (23/4),
Fernando Abrucio chama a atenção para uma causa muito frequente de
fenômenos do tipo Carlos Cachoeira: o jogo político nos estados e
municípios, dominado por oligarquias. Aponta como caminho para a
democratização mudar a lógica da política estadual e municipal num
processo de baixo para cima. Mas é nessas esferas que deverá haver mais
apego do funcionalismo à opacidade.
Se o que Abrucio pede é “uma melhora da
democracia de baixo para cima, reformando a política nos municípios e
nos estados, para evitar que o Congresso Nacional e os ministérios
sejam, regularmente, cúmplices da bandidagem”, a maior falta de
transparência nessas esferas é um fenômeno desanimador.
Repensar o Estado
Em entrevista ao Estado de S. Paulo (25/3),
o especialista canadense Toby Mendel, consultor da Unesco que estudou
legislações de muitos países, considera a lei brasileira uma das 30
melhores do mundo. É algo muito típico do Brasil haver contraste entre o
plano ideal de formulação das leis e a prática, onde não existe só
rotina e burocracia, mas criatividade – só que para contornar ou burlar
as disposições legais.
Entretanto, um fato auspicioso é que a
entrada em vigor da lei não só permitirá como induzirá cidadãos a
repensar o funcionamento do Estado brasileiro nas três esferas.
Perrine Canavaggio é um nome respeitado
no mundo dos arquivos. Consultora da Unesco, ela foi secretária-geral
adjunta do Conselho Internacional de Arquivos (ICA, sigla em inglês)
entre 2002 e 2009. Em 2004, participou em São Paulo do seminário
Documentos Privados de Titulares de Cargos Públicos. Em 2011, no Rio de
Janeiro, do 7º Seminário Internacional de Arquivos de Tradição Ibérica,
onde apresentou o trabalho “El acceso a la información pública en el
mundo: Un derecho humano emergente”, ponto de partida da entrevista
apresentada a seguir.
Um processo em etapas
Qual foi a evolução histórica, em escala mundial, do acesso a informações públicas?
Perrine Canavaggio – O
direito de acesso à informação foi progressivamente reconhecido e
levado à prática nos séculos 19 e 20. O primeiro país a abrir o acesso
aos documentos de origem pública foi a Suécia, ainda no século 18, com a
lei de 1766 sobre liberdade de imprensa.
Duas categorias de leis apareceram
sucessivamente. Primeiro, leis de arquivos, que abriram a consulta a
documentos, para pesquisa histórica, seguindo prazos que tendem hoje a
se reduzir. Em seguida, leis relativas a documentos administrativos,
após a Segunda Guerra Mundial e a Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948.
Sucederam-se então muitas ondas
legislativas. A votação do Foia (Freedom of Information Act; lei de
liberdade de informação), nos Estados Unidos, em 1966, é uma etapa
essencial. Ele está na origem do movimento em prol do que se chama
transparência administrativa e da prestação de contas (accountability). Muitas leis se inspiraram no Foia.
Leia a íntegra e a entrevista no Observatório da Imprensa
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