No final de noite desta quinta-feira (13), horas depois de uma
chuvarada, a apresentadora de uma rádio paulistana especializada em
trânsito entrou no ar e disse: “Levei quatro horas para
vir do centro de São Paulo até o estúdio, aqui no Morumbi”. É um
trajeto que, em condições normais e fora do horário de pico (depois das
20h), não levaria mais que 45 minutos, estourando.
Antes, na noite de quarta-feira (12), quando o São Paulo sagrou-se
campeão da Copa Sul-americana — jogando também no bairro do Morumbi –,
uma colega partiu da região central, às 19h, mas desistiu de ir ao jogo
após levar cerca de uma hora para atravessar somente
o túnel Ayrton Senna, no sentido zona sul. Decidiu então ir para casa,
no sentido oposto, mas não conseguiu achar um jeito de driblar o
trânsito 100% travado no seu itinerário. Parou numa padaria 24h, viu
parte do jogo na TV, foi embora — e chegou em casa por volta da
meia-noite.
Por fim, eu mesmo, deixando o UOL por volta de 23h30
nesta quinta, olhei o trânsito pela janela e quase desisti: a avenida
Faria Lima estava parada nos dois sentidos, bem como a Rebouças/Eusébio
Matoso. Respirei fundo, e fui embora — mas tive de fazer um caminho
praticamente surreal, no sentido oposto de minha casa e atravessando
para o outro lado do rio Pinheiros, acrescentando cerca de 20 km aos 6
km habituais até onde moro.
Houve chuva, é verdade, e houve eventos (jogo na quarta, e, ontem à
noite, show de Andrea Bocceli no Jockey Clube). Mas não é desculpa. São
Paulo não poderia parar — mas para.
Zé Carlos Baretta/FolhapressTrânsito na avenida Paulista, em São Paulo, na noite de quinta-feira (13)
Corta para o prefeito eleito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), em entrevista ao programa Roda Viva,
da TV Cultura, na segunda-feira (10). Em meio a questionamentos sobre
quanto vai custar a tarifa de ônibus na cidade após a posse, o futuro
gerente do nosso caos disse algo extremamente importante.
“É um direito do cidadão ter um bem como o carro; os trabalhadores da Europa e dos Estados Unidos têm carros”, afirmou Haddad, marcando posição distante do anticarrismo de quem vê o automóvel particular com fonte de todos os males urbanísticos e ambientais do planeta.
Mas ele acrescentou, não com essas exatas palavras, que o
ideal é que o carro seja usado para o lazer, em viagens, nos fins de
semana; no dia-a-dia, para ir ao trabalho, aos estudos, o ideal é usar o
transporte coletivo. Claro, se houver transporte coletivo.
Subscrevo o que disse Haddad, mas com ressalvas. A coisa funciona
assim mesmo na Europa, mas a excepcional malha ferroviária daquele
continente torna o carro dispensável até mesmo para viagens
mais longas e/ou internacionais. Em Paris, ter um automóvel é inútil
para quem mora na abrangente zona 1 do metrô; em cidades relativamente
pequenas e planas, como Berlim e Copenhague, quem não usa bicicleta é
ogro.
Nos EUA é diferente, talvez devido ao histórico culto ao carro e à
concepção urbanística que levou as classes altas urbanas a morar em
subúrbios desprovidos de transporte público, e que também colocou o
megacomércio (como os outlets) fora das regiões mais adensadas.
Não estou apontando um mau passo retórico do prefeito eleito. Haddad
está certo em seu diagnóstico, embora os dois eventos que ajudaram a
travar São Paulo na quarta e na quinta tenham sido de lazer — e o ideal era que as pessoas pudessem ter ido até eles de condução.
Uma versão mais radical do mote, e que nos agrada mais, seria: Sempre que possível, a qualquer dia e hora e para qualquer fim, use o transporte coletivo.
Ponto. Em São Paulo, pelos próximos quatro anos caberá a Haddad fazer
com que essa proposta seja atraente, vale dizer, que haja transporte
coletivo de qualidade, no que se tratar da esfera municipal. Caso
contrário, não é justo impedir os paulistanos de optarem pelo carro —
sempre, a qualquer dia e hora e para qualquer fim. Mesmo que isso
signifique perder horas de vida (irrecuperáveis) presos num
congestionamento de proporções cortazarianas, vendo o mundo passar (ou
parar) através do para-brisa.
por Claudio Luís de Souza
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