O BRASIL não existe para o jornalismo português. Exceto quando nasce um fenômeno midiático.
Se perguntarem a um português anônimo quem foi Fernando Henrique
Cardoso (que passou recentemente por Lisboa, com pompa e circunstância)
ou o que significa o julgamento do mensalão, o lusitano terá
dificuldades sérias em juntar duas ideias sérias a respeito. "Lula",
sim, acende umas luzes, e não apenas gastronômicas. "Dilma", coitada,
volta a apagá-las.
Mas se falarem do palhaço Tiririca, o português anônimo rasga um
sorriso de orelha a orelha e completa: "Pior do que está, não fica".
Tiririca foi o último grande estadista brasileiro a cruzar o Atlântico.
Celso Russomanno pode ser o próximo. Leio jornais lusos. Assisto a
reportagens da TV nativa. Russomanno está em todo lado, distribuindo
beijos e abraços na corrida para a prefeitura de São Paulo. Há um padrão
aqui: Tiririca e Russomanno são produtos de fácil exportação porque
ambos são produtos da televisão.
Uma virtude? Longe disso. E os lusitanos deveriam saber, até por
experiência própria, que a crise de Portugal também se explica por esse
padrão: durante anos, os portugueses não votaram necessariamente nos
melhores candidatos. Apenas nos candidatos que tinham maior sucesso
midiático. Deu no que deu.
Esse, aliás, é o problema principal das democracias atuais. A
democracia é o pior regime que existe, com a exceção de todos os outros?
Sem dúvida. Mas existe um outro pensamento de Churchill sobre o assunto
que também merece atenção: dizia ele, com típica bonomia, que o melhor
argumento contra a democracia estava em falar durante dois minutos com
um eleitor regular.
De fato. Uma cabeça, um voto. Em teoria, essa contabilidade pode ser um
bálsamo para a nossa "paixão pela igualdade", para usar a expressão
clássica de Alexis de
Tocqueville (1805-1859). Mas o que sucede quando a maioria escolhe
barbaramente mal? Ou, pior ainda, quando escolhe o candidato errado
pelos motivos errados?
O referido Tocqueville, cem anos antes de Churchill, já tinha alertado
para o problema na obra "Da Democracia na América". A "era democrática",
escrevia ele em 1835, seria imparável nas sociedades cristãs do
Ocidente (sintomaticamente, Tocqueville era omisso sobre outras regiões
do globo; um aviso sério para os poetas da Primavera Árabe que babam de
lirismo por aí).
Mas a "era democrática", capaz de conceder a cada indivíduo iguais
direitos e deveres, não apresentava apenas virtudes. Tinha perigos
óbvios e o maior deles estava precisamente na ideia de que quantidade é
qualidade.
Ou, como escreveu o autor, na crença infantil de que existe "mais
inteligência e sabedoria em um certo número de homens unidos do que em
um único indivíduo".
Com notável presciência, Tocqueville alertava para as "tiranias da
maioria" e aconselhava alguns freios para evitar os seus excessos
-descentralização política, liberdade de imprensa, reforço do
associativismo, separação de poderes etc.
O que Tocqueville não poderia antever no século 19 era a emergência de
um novo tipo de regime democrático no século 21: a democracia midiática,
esse sistema que premia os talentos superficiais de um indivíduo
(imagem de plástico, discurso populista, sentimentalismo postiço) e
ignora as qualidades fundamentais de um líder (coragem, experiência,
competência, temperança).
Eis a suprema ironia: a mídia assume-se como o "quarto poder",
destinado a vigiar e a denunciar os abusos de todos os outros. Mas a
própria mídia serve de instrumento, voluntário ou involuntário, para dar
luz e palco a personagens que jamais seriam eleitas por suas exclusivas
habilitações.
O resultado dessa perversidade é que cresce cada vez mais o abismo
entre políticos que merecem ganhar eleições (independentemente da
imagem) e políticos que podem ganhar eleições (independentemente da
competência). A democracia midiática premia os segundos e ignora os
primeiros.
Hoje, o obeso Churchill e o paralítico Roosevelt seriam ofuscados por um palhaço qualquer. Azar o deles?
Não. Azar o nosso, leitor. Quem elege palhaços, acaba vivendo num circo.
Por João Pereira Coutinho, publicado originalmente na Folha de S. Paulo.
As opiniões aqui expressas são de responsabilidade do autor.
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