O primeiro-ministro inglês, o conservador David Cameron, depôs na
Comissão Leveson por cerca de cinco horas na quinta-feira (14/6). Ele
foi longa e detalhadamente questionado em sessão pública, transmitida ao
vivo pela televisão e pela internet, pelo advogado sênior (queen’s
counsel) da investigação, Robert Jay.
A Comissão Leveson foi criada pelo governo inglês, em julho de 2011,
com os objetivos de “examinar a relação da mídia com o público, a
política e os políticos” e de fazer recomendações relativas “ao futuro
da regulação e da governança da mídia consistentes com a manutenção da
liberdade da imprensa e da garantia dos mais altos padrões éticos e
profissionais”.
O trabalho da Comissão pode ser acompanhado em um portal na internet,
inclusive os vídeos e as transcrições dos depoimentos. O do
primeiro-ministro, por exemplo, está disponível aquie aqui.
Não há registro de nenhuma notícia, comentário ou análise na mídia
britânica argumentando que a presença do primeiro-ministro na Comissão
tenha colocado em risco a democracia, ameaçado a liberdade de expressão
e/ou da imprensa naquele país. Ao contrário, é consenso que o trabalho
da Comissão Leveson constitui um passo necessário e indispensável para
corrigir desvios na prática do jornalismo e na relação de jornalistas e
proprietários com instituições e políticos ingleses que – aí sim –
colocavam em risco todo o processo democrático.
O depoimento de Cameron
Quem se interessa pelas questões que envolvem a grande mídia e o poder
político no mundo contemporâneo (mesmo depois da internet!) deveria
assistir e estudar o depoimento de David Cameron. Embora existam
peculiaridades relativas à política inglesa da última década, o que se
investiga é umproblema universal: como grupos privados de mídia – no
exercício de seu poder quase monopolístico de controlar o debate público
– são capazes de cooptar políticos em busca de apoio na disputa
eleitoral (e, depois, para a governabilidade) em troca de eventuais
favores na elaboração e implementação de políticas “públicas” –
sobretudo, mas não só, na regulação do setor de comunicações – que
atendam aos interesses “privados” desses grupos. Toda uma rede de
envolvimento e de compromissos vai se tecendo ao longo do tempo e o
interesse coletivo se perde na disputa pelo poder. Pior ainda: o
processo democrático fica seriamente comprometido.
Sobre David Cameron e seu partido pesam graves suspeitas e acusações de
terem firmado um pacto com o grupo News Corporation em troca de apoio
para as eleições de 2010 e, depois de eleitos, de terem favorecido o
grupo de Rupert Murdoch em relação a políticas públicas envolvendo a BBC
e o OfCom.
De qualquer maneira, para um observador brasileiro, é quase
“surrealista” ver um primeiro-ministro conservador sendo questionado em
público sobre o poder da televisão, dos jornais, da necessidade de
regulação em nome de maior competição e da pluralidade de opiniões, da
importância do debate público sobre a mídia e seu papel, sobre a
parcialidade das notícias, sobre a transformação da notícia em
espetáculo aprisionado no ciclo permanente de 24 horas que conduz os
noticiários etc., etc.
E no Brasil?
Se o eventual leitor(a) quiser saber mais sobre o trabalho da Comissão
Leveson e o depoimento de David Cameron, salvo em alguns poucos portais
na internet, terá que recorrer ao site da Comissão ou a matérias em
jornais como o The Guardian ou o The New York Times (ver, neste
Observatório, “Debate sobre papel dos blogueiros chega ao Inquérito
Leveson“, “Tony Blair fala sobre relação entre políticos e imprensa“ e
“Rebekah Brooks é acusada de obstruir a justiça“). Não encontrei nos
jornalões brasileiros cobertura sobre o assunto. Certamente não
consideram o tema como de interesse público em nosso país.
Ao contrário da Inglaterra, a negociação de apoio de grupos privados de
mídia a políticos e governos brasileiros está bem documentada e não é
segredo para ninguém. A biografia “oficial” de Roberto Marinho, por
exemplo, escrita por Pedro Bial, é plena de casos [Jorge Zahar Editor,
2005].
Por outro lado, a interferência direta de grupos privados de mídia na
formulação de políticas públicas para o setor de comunicações também
está documentada. Um caso que vale conhecer é o processo de construção
da política pública que definiu o padrão de TV Digital no país.
Recomendo a leitura do livro de Juliano Domingues, A política da
Política de TV Digital no Brasil – Atores, Interesses e Decisão
Governamental; Editora Multifoco, 2011.
Aliás, alguns dos principais “homens públicos” brasileiros – nos
Executivos ou no exercício de mandatos parlamentares – são, eles
próprios, concessionários de emissoras de rádio e televisão. Em alguns
casos, convergem na mesma pessoa o poder concedente e o concessionário. E
essa situação absurda se sustenta sobre uma interpretação do artigo 54
da Constituição Federal de 1988 que, aliás, está sendo questionada no
Supremo Tribunal Federal (ADPF nº 246).
Ademais, no Brasil, as tentativas de se discutir a mídia (vide, por
exemplo, o não cumprimento do artigo 224 da CF88 – Conselho de
Comunicação Social) ou a sua regulação têm sido automaticamente
interditadas pelos grupos privados em nome – veja só – da própria
liberdade de expressão. Para os grupos privados de mídia brasileiros, o
debate e/ou a regulação colocariam em risco a democracia.
Enfim, tomar conhecimento do que acontece na Inglaterra serve, sobretudo, para que saibamos melhor o tamanho do nosso atraso.
Por Venício A. de Lima para o Observatório da Imprensa
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