Mora na filosofia: não estou
querendo rimar profissão com dor mas tentando entender como o fim de um
processo pode se encadear ou começar outro. Hoje mesmo conversando com
uma amiga que ocupa posição de comando em uma revista, ontem conversando
com dois experientes e grisalhos colegas que se sentem desalentados com
o fim do jornalismo, eu só me consolo por notar que não estou só nessa
triste percepção.
As demissões se acumulam, os equívocos se sucedem e
todos nós perguntamos, estarrecidos, para onde está indo a mídia. A que
conhecíamos faleceu e está enterradíssima como bem provam os jornais que
fecham e a cada vez mais avassaladora confusão entre jornalismo e show,
jornalismo e culto a celebridades inócuas e jornalismo e desserviço e
não prestação de serviços.
Em linhas gerais as pessoas defendem teses e assumem posições
procurando fatos que se encaixem nas suas convicções. Se esta triste
escola foi inaugurada por Veja já não importa. O que importa é que se
disseminou. São Paulo está acuada pelo crime que expande fronteiras e os
grandes meios ou ignoram a questão (fingindo que o barulho é na Síria)
ou a tratam como um fato cotidiano, banal. Como se fosse banal 10 jovens
da periferia entrarem em um ônibus cheio e “tacarem terror” e gasolina
em tudo.
Cada qual descreve a realidade como lhe convém. Os acuados se acuam. Os
refrigerados repercutem à distância usando e-mail, google , skype e
outros assépticos instrumentos de apuração. Daí me lembro de Ryszard
Kapuscinski, que bateu perna mundo afora, sobretudo na África ancestral,
e nos trouxe relatos impressionantes e bem escritos de terras e gentes
que mesmo que estejam ao nosso lado por vezes não enxergamos. Penso nele
quando ainda acredito em jornalismo feito de carne e osso . Em
jornalismo real e não virtual.
Sete vidas
Costumo repetir uma frase bobinha há anos. “Gosto de jornalismo e não
de jornalistas”. Antes que o leitor me julgue pedante devo dizer que a
frase se contextualiza no sentido de que muitos jornalistas, sempre tão
ciosos de sua própria verdade, se tornaram burocratas, acomodados,
reclamões. Muitos deles, na contramão da volatilidade que vivemos,
querem planos de carreira e aposentadoria, regalias a longo prazo. O
espírito de aventura que no passado caracterizou a escolha pela
profissão ficou abaixo dos chinelos.
Kapuscinski viveu de 1932 a 2007 quando morreu em sua Varsóvia natal.
Viveu muitas vidas dentro da vida dele. E parece nunca ter tido a
intenção de contar a realidade conforme os olhos de qualquer ideologia
ou conveniência mas a simples “vida como ela é”, para lembrar aqui
expressão bacana do Nelson Rodrigues. Lendo hoje mesmo um texto de
Kapuscinski sobre a China da época de Mao me deparei com uma realidade
que já não existe. Mas sua clareza é tão grande que fica como registro
literário de um período. O autor é sim a prova (agora morta) de que
jornalismo , quando bem feito, vira sim literatura. Ao descrever
milhares de ciclistas se movimentando em monobloco como um rio caudaloso
nessa China de passado recente ele talvez nos devolva à simples trilha
daquilo que o jornalismo tem de melhor: mesmo na época das imagens
múltiplas ler uma bela descrição com belo estilo é mais que uma
fotografia. Um bom texto respira, transpira, evacua, goza... nosso
jornalismo agoniza. Mas acredito que ele tenha sete vidas. Não serei eu a
jogar a pá de cal.
Por Ricardo Soares, publicado originalmente no Observatório da Imprensa.
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