A apropriação da cultura pela indústria do entretenimento é um movimento histórico, inerente ao capitalismo, que se estende aos inúmeros âmbitos do setor artístico. Na televisão, para além do faturamento advindo da publicidade, as emissoras comerciais têm aproveitado a notoriedade de seus artistas para alavancar os chamados produtos derivados. São mercadorias alheias à recepção televisiva, mas que referenciam diretamente o conteúdo televisual através da menção de artistas ou logotipos previamente difundidos na TV. No caso das Organizações Globo, em termos de indústria fonográfica, merece registro sua versatilidade, conquistando bons resultados, mesmo com o amplo fluxo de bens musicais na internet. Segue, há muitos anos, caminho contrário ao de suas concorrentes, Record e SBT, que patinam no segmento.
Para compor a trilha sonora de uma telenovela, por exemplo, profissionais do setor precisam pesquisar temas capazes de potencializar tanto o produto televisivo quanto os seus derivados (como os CDs, lançados nas versões nacional e internacional). Seus intérpretes, geralmente cedidos por gravadoras, dividem-se entre os que são reconhecidos pela audiência e agregam popularidade ao produto e os que ainda necessitam de notoriedade, sendo alavancados a partir desta exposição, com resultados positivos também para as gravadoras. É a transformação da arte em mercadoria, uma vez que, ao possuir um tema musical em uma novela da emissora líder de audiência, o artista passa a ser rapidamente conhecido. Uma dinâmica que, no auge da pirataria, é extremamente importante, não apenas para a venda de música gravada, mas, principalmente, para o aumento da comercialização de shows.
Trilhas e hits
Seguindo a estratégia de redução da aleatoriedade própria da cultura, a Globo tem conseguido vender não apenas CDs de suas telenovelas, compilados, mas também dos artistas que promove. Uma simples consulta na internet mostra que, entre os 10 álbuns mais vendidos no Brasil, pelo menos a metade de seus intérpretes tem alguma ligação com a Globo, sejam contratados diretos ou assíduos em seus programas. Talvez o telespectador mediano não perceba que, durante a exibição de um capítulo de teledramaturgia (cerca de uma hora e 12 minutos de tempo no vídeo, incluindo os breaks) há um bombardeio de temas sonoros, sendo majoritariamente compilações (portanto, não produzidos especialmente para a trama).
Na trilha sonora de Fina Estampa, a atual novela das nove (na realidade, das 21h10), assinada por Aguinaldo Silva e colaboradores, as escolhas mesclam sucessos do momento com antigos hits e releituras, em uma seleção que mistura intérpretes como Gonzaguinha, Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho com nomes mais comerciais, como a dupla de sertanejo universitário Jorge e Matheus, a cantora de funk Perlla e a banda de axé Jammil & Uma Noites. A penúltima novela global do horário, Insensato Coração, de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, contou com artistas graúdos na trilha sonora: Elis Regina, Maria Bethânia, Nana Caymmi, Simone, Caetano Veloso e Ney Matogrosso, entre outros, demonstrando a vitalidade da música popular brasileira. Ainda que com um repertório mais sofisticado, suas trilhas sonoras mantiveram-se durante meses nas paradas de sucesso.
Cabe ressaltar que não se trata de um mercado desconhecido para as Organizações Globo. Maior expoente da Globo na indústria fonográfica, a Som Livre foi fundada pelo produtor musical João Araújo, em 1969, primeiramente para comercializar trilhas sonoras de novelas, mas logo teve seu catálogo expandido, passando a oferecer artistas contratados. Em seu auge, chegou a ser a gravadora de artistas importantes da MPB e populares (quem mais faturou na história da gravadora foi Xuxa, atingindo a marca de 80 milhões de álbuns vendidos). A partir dos anos 2000, a empresa diversificou sua atuação no mercado do entretenimento doméstico e, mudando o foco, passou a distribuir mídias como DVD e, em seguida, blue-ray. O segmento gospel, renegado há anos atrás, hoje é um dos principais gêneros comercializados pela Som Livre.
Telenovelas e personagens
A sonorização das novelas deve estar sincronizada com os conflitos apresentados, causando efeitos sensoriais e afetivos nos telespectadores, o que requer uma produção musical acurada. Ante este pilar, cenas memoráveis já foram produzidas. Para citar um exemplo, a cena deLaços de Família (2000) em que a personagem Camila (Carolina Dieckmann) raspa os cabelos por conta da leucemia não seria a mesma sem a melodia Love By Grace,interpretada pela cantora ítalo-belga-canadense Lara Fabian. Com alto grau de carga dramática, o hit tornou-se um clássico e atualmente é impossível negar o papel da música na consagração do produto exibido – potencializando a venda de dois milhões de álbuns da telenovela, o que levou a atingir, na época, o primeiro lugar por oito semanas nas paradas de sucessos.
Mais recentemente, o tema “Coisas Que Eu Sei”, composição de Dudu Falcão para Danni Carlos, embalou as cenas da personagem Júlia (Débora Falabella), na novela Duas Caras (2007). Segundo a Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus), foi a segunda música mais executada nas rádios em 2008. Outro caso, “Amado”, de Vanessa da Mata, tema da personagem Lara (Mariana Ximenes), de A Favorita (2009), também figurou entre as mais tocadas do ano. Ambas as cantoras receberam disco de platina por seus álbuns autorais, um feito indiscutivelmente impulsionado pela notoriedade das respectivas telenovelas. Em tempos de crise da indústria fonográfica, participar com uma canção em uma teleficção da Globo é tudo o que querem aqueles que insistem em disputar o mainstream musical.
Por Valério Cruz Brittos, Andres Kalikoske e Jonathan Reissão, respectivamente, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, doutorando em Ciências da Comunicação e graduando em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda da mesma instituição. Para o Observatório da Imprensa.
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