Na edição do Jornal Nacional de 24
de fevereiro de 2012 – um momento marcado pelas ainda recentes ações
higienistas de retirada dos chamados “noias” das ruas de São Paulo e Rio
de Janeiro –, após uma longa reportagem de sete minutos sobre o crack
para discutir a internação compulsória de seus usuários, o âncora
William Bonner arrematou, diante das sobrancelhas graves de sua colega
Patrícia Poeta: “Todo mundo diz que crack basta experimentar uma vez só e
a pessoa fica viciada”.
Infelizmente, Bonner não citou fontes nem apresentou referências. Mesmo
com as fantasias apocalíptico-epidêmicas associadas ao crack, ainda
assim é necessário corrigir a informação do jornalista e alertar ao
leitor que “todo mundo”, nesse caso específico, está errado. Não existe
uso de droga sem usuário e sem contexto. Por mais que uma substância
possa ter, por sua farmacologia, um maior ou menor potencial para
induzir dependência, não existem drogas com propriedades “mágicas”. É a
combinação entre a substância, o momento de vida da pessoa e o contexto
de consumo que causam ou impedem a adição. Nenhuma droga vicia por si e
nem instantemente, e isso vale tanto para o crack e a heroína quanto
para uma das drogas de maior potencial de dependência, o tabaco.
A redução da criminalidade em Portugal
É uma tarefa árdua para o jornalista se mover dentro deste campo.
Drogas, incluindo o álcool, são um assunto polêmico e complicado, que
afeta as pessoas de formas diferentes e envolve campos distintos do
conhecimento – Direito, Sociologia, Antropologia, Farmacologia,
Neurociências, Psicologia, Religião, Saúde e Segurança Pública – áreas
que usam termos mutuamente incongruentes e expressam visões
frequentemente antagônicas entre si. Para complicar ainda mais, os
jornalistas são uma categoria profissional cujo contato com as drogas
legais e ilegais não é, definitivamente, menor do que na população em
geral.
A segurança do profissional de imprensa, portanto, diante da
dificuldade deste tipo de pauta, do peso do prazo e da necessidade de
que a notícia também venda o meio onde ela circula, acaba sendo o lugar
onde a classe política viceja diante da questão das drogas: o senso
comum. Não ofenda, não contorne, não surpreenda o senso comum: enquanto
as pessoas acreditarem que as drogas são um mal em si, mantém-se a zona
de segurança.
Em um painel organizado pela Organização Mundial da Saúde em Washington
para marcar o Dia Internacional contra o Abuso de Drogas, na
terça-feira (26/6), especialistas defenderam as estratégias de redução
de danos e até a legalização de substâncias ilícitas como formas de
reduzir o impacto social de seu uso. Até onde a imprensa nacional
chegará sobre este assunto, além de reproduzir as notas de agências
internacionais e mencionar as “campanhas” oficiais? É fato que Portugal
tem uma história de já 10 anos de sucesso na redução da criminalidade e
do abuso ao tornar o uso de drogas legal. O que ficamos sabendo disso em
nosso país? O que ouvimos por aqui do impacto das narcossalas da Europa
para usuários de drogas que têm o mesmo perfil de nossos dependentes de
crack?
Estimulante cerebral
O que lemos, assistimos ou escutamos são, quase invariavelmente,
visitas dramáticas às “cracolândias” reais ou imaginárias e incursões a
um único tipo de tratamento – internações compulsórias nas ditas
comunidades terapêuticas – cuja efetividade é questionável.
Monocordicamente, a imprensa reforça o que todo mundo já pensa sobre o
assunto e, colateralmente, além de não contribuir socialmente no debate,
capitaliza política e financeiramente pessoas e modelos que estão
atrelados a, no mínimo, violações aos direitos humanos, segundo
demonstrou um recente relatório do Conselho Federal de Psicologia.
Quando assisti à manifestação de William Bonner em cadeia nacional e
horário nobre, fiquei pensando se o âncora dispararia expressões de
tamanho senso comum se o assunto fosse, por exemplo, a pena de morte
(“todo mundo diz que bandido bom é bandido morto”) ou a conduta de algum
político (“todo mundo diz que o deputado fulano é ladrão”). Claro que
não – apesar de ser, neurologicamente, um estimulante cerebral, só o
crack é capaz de entorpecer a imprensa a esse ponto.
Por Luís Fernando Tófoli tirado do Observatório da Imprensa
Por Luís Fernando Tófoli tirado do Observatório da Imprensa
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