A História em bits

Anunciado em sua edição de domingo (20/5), o portal histórico do Estado de S.Paulo deve ser aberto à visitação pública nesta quarta-feira, dia 23/5. Trata-se do maior acervo de informações jornalísticas a ser lançado na internet brasileira, com o registro cotidiano dos fatos mais relevantes que vieram ao conhecimento da sociedade desde 4 de janeiro de 1875.

Ao longo desses 137 anos, o jornal paulista registrou acontecimentos importantes como a transição do Império para a República, as duas grandes guerras mundiais e a evolução da economia. Por ter sempre dedicado grande atenção ao noticiário internacional, o acervo também permitirá observar as mudanças que ocorreram no mundo nesse período, sob o olhar de um jornal brasileiro.

O lançamento tem importância crucial para pesquisadores de muitas especialidades, como os interessados em acompanhar o progresso das tecnologias, desde o primeiro telefone colocado à venda no país por um representante do proprietário da patente, Graham Bell, que veio a São Paulo e fez um anúncio no jornal quando ele ainda se chamava A Província de São Paulo.

Também estará disponível a história do futebol brasileiro, desde as primeiras partidas organizadas pelos ingleses, passando pelas conquistas da seleção e incluindo os registros de cada um dos 1.281 gols marcados por Pelé ao longo de sua carreira.

Versão própria

A tecnologia escolhida para organizar esse oceano de informações inclui um dicionário para reconhecimento de palavras com grafia antiga e uma calculadora para conversão de valores monetários ao longo das mudanças de moedas por que passou o país desde o Império. São, segundo o jornal, 50 bilhões de caracteres, conteúdo suficiente para encher 2 mil DVDs, organizado para ser acessado por data ou por palavra-chave.

O projeto foi iniciado em 1995, ano em que também foi lançada a primeira versão do jornal para internet, mas sofreu algumas interrupções ao longo desse período. O portal representa o encontro do tradicional diário com sua própria história, e vai permitir observar como o jornalismo também mudou ao longo dos anos.

Curiosamente, o surgimento da internet coincide com um período em que o jornalismo brasileiro passou a apresentar algumas deficiências que reduziram sua importância como fonte primária de estudos acadêmicos. Ainda assim, o arquivo digitalizado do Estado de S.Paulo é um tesouro para historiadores, jornalistas, economistas e pesquisadores de todas as especialidades.

No entanto, é preciso ressaltar, como declara um dos entrevistados na edição de domingo, que o acervo do Estadão traz apenas a versão que o próprio jornal deu aos fatos que reproduziu como notícia. Dessa forma, a abertura das consultas ao público também cria a oportunidade para metapesquisas sobre como o jornal ofereceu aos seus leitores uma visão específica da História, em seu registro diário dos acontecimentos.

Olhando para o futuro

Num momento em que a imprensa tradicional enfrenta o desafio das novas tecnologias digitais, que rompem a própria lógica do discurso jornalístico, será interessante observar como se deu a apropriação de tecnologias emergentes ao longo dos tempos.

Recursos como a fotografia, o telégrafo, telex, telefone, fac-símile, impressão em cores e terminais de computação integrados a processadores centrais produziram grandes mudanças nas redações e no modo de captar e trabalhar as notícias. Mas nenhuma dessas tecnologias causou tanto impacto como a das redes de computadores pessoais e, mais recentemente, a convergência entre a computação de alto desempenho e a comunicação em banda larga com aparelhos móveis.

Mesmo apresentada numa tela de computador ou de telefone celular, uma página digitalizada de jornal feita originalmente para o papel revela o abismo que se produziu no próprio jornalismo. Visto em seu novo suporte, o texto de um jornal do século 20 pode parecer completamente anacrônico, ainda que separado da atualidade por apenas três ou quatro décadas.

A nova tecnologia produz uma ruptura profunda em todos os campos da atividade humana, ao ponto de autorizar questionamentos sobre a natureza da História. Mas a observação do processo de adaptação dos jornais mostra como a imprensa resiste a essa nova mudança, que já tem quase vinte anos, no que se refere ao processo de decisão sobre o que é notícia.

Além de abrir um olhar crítico sobre o passado, o lançamento do acervo histórico do Estadão em versão digital vai permitir vislumbrar o futuro da imprensa.

Por Luciano Martins Costa - reproduzido do Observatório da Imprensa