O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (29/11) pela TV Brasil discutiu o bom momento do mercado de documentários no país. Em 2010, estrearam mais de 40 produções de não-ficção nacionais, que levaram cerca de 850 mil espectadores às salas de exibição. Em comparação com o cinema de ficção, sobretudo com os blockbusters internacionais, os números do cinema documental brasileiro ainda são acanhados, mas representam um avanço. Entre os fatores que contribuíram para o aumento do número de produções está a tecnologia digital, que barateou os custos de gravação e edição.
Alberto Dines recebeu dois cineastas no estúdio do Rio de Janeiro: Eduardo Escorel e Vicente Ferraz.
Escorel dirigiu, produziu e montou diversos filmes desde 1965, como Terra em Transe (1967), Macunaíma (1969), Cabra marcado para morrer (1984) e Santiago (2006). Dirigiu os documentários Chico Antônio – O herói com caráter (1984), 35 – O assalto ao poder (2002), Vocação do Poder (2005) e O Tempo e o lugar (2008). Vicente Ferraz dirigiu vários curtas e documentários no Brasil e na América Central. Seu primeiro longa-metragem, o documentário Soy Cuba, O Mamute Siberiano (2005), foi premiado nos Festivais de Gramado, Recife, Guadalajara e outros. Ano passado, Ferraz participou do festival “É Tudo Verdade” com o documentário Arquitetos do Poder (2010).
Em editorial, Dines sublinhou que o cinema nasceu documental e, depois, partiu para “os labirintos da imaginação”. “Apesar das ilimitadas possibilidades do filme de ficção, o documentário conseguiu atravessar incólume os 116 anos da história do cinema. E, ao contrário do que aconteceu com o Jornalismo, as novas tecnologias só o legitimam e o reforçam. Mas a sobrevivência do documentário também tem a ver com a formidável coleção de eventos ao longo dos séculos XX e XXI, nos quais foi testemunha e agente”, analisou. Para Dines, o filme de não-ficção é o “antídoto” das telenovelas e, talvez por isso, a televisão comercial não dê a este gênero o estímulo que merece.
Sentimentos vs.Realidade
A reportagem exibida antes do debate ao vivo mostrou a opinião de cineastas, críticos e estudiosos do setor. O consagrado documentarista Eduardo Coutinho concedeu uma entrevista ao programa onde comenta que parte dos documentários não se paga com a exibição. O público de alguns não chega a 5 mil espectadores. “O que existe como referência para quem quer fazer um filme e ter uma chance de ter espectadores é fazer um filme sobre música. E alguns são excelentes”, destacou.
Coutinho comentou a interseção entre as atividades de jornalista e de documentarista: “Eu não faço filmes em que esses dados jornalísticos sejam importantes. Essas pessoas com quem eu falo não estão no Google. Então, não tem essa coisa de você entrevistar, ter a fonte e dizer ‘como? Mas aqui no Google está que você...’. Não são Napoleões, são Silvas. E falam de sentimentos. Então, eu não posso checar se ela amou, foi feliz ou não. Sempre há algo de verdadeiro e algo de teatral, que é para dar sentido à vida dela. E eu não estou ligando”. Coutinho explicou que ficam de fora de seus filmes os mitômanos, os que dizem que têm oito filhos e na verdade não têm, ou os que afirmam que conhecem astros como Lady Gaga ou Grace Kelly.
Para Coutinho, o caráter jornalístico é importante para os filmes de não-ficção, mas acaba gerando uma “maldição” para o estilo de documentário “anti-jornalístico”. “Ainda hoje, no mundo, o que mais interessa ao público – e à televisão mundial então nem se fala – é o seguinte: um grande documentário sobre a invasão do Iraque, um outro sobre os papéis do Pentágono. Filmes que falam sobre o real político mas que não são de caráter realmente jornalístico. Eu simplesmente fico louco porque as pessoas vão ver esses filmes não porque são bem ou mal feitos. Não interessa quem fez. É porque o assunto interessa. E eu digo: o que interessa em um filme é como ele é feito e não de que ele é feito”.
Incentivo do governo
Pedro Butcher, editor do site Filme B, especializado no mercado de cinema no Brasil, explicou que 850 mil espectadores representam apenas 3,5% do público brasileiro, mas que esta é uma cifra significativa. “A gente tem um número excepcional de documentários em cartaz no Brasil. Acho que se a gente for estudar um pouquinho dos outros países é muito difícil encontrar a mesma quantidade em cartaz na mesma semana, na mesmo época. Às vezes estreiam dois na mesma semana”, ressaltou. O jornalista destacou que a facilidade de produção atual no Brasil conta com um estímulo do governo através de programas de fomento ao setor, como o Doc TV. “E a partir de um certo momento alguns desses programas ficaram tão legais, tão interessantes, que passaram a chegar ao cinema”.
O crítico de cinema Carlos Alberto Mattos, especializado em documentários, sublinhou que o país está construindo uma tradição no setor. “Já é de alguns anos que a gente vem com um público mais ou menos, eu não digo que seja um público de uma explosão de audiência, mas um público frequente, um público regular e com a chance de levar os filmes às salas de cinema, o que 10, 15 anos atrás era impensável”. O crítico explicou que os documentários músicais têm potencial para atrair o público porque o povo brasileiro tem uma paixão natural pela música.
Para o cineasta Wladimir de Carvalho, o documentário no Brasil tem se firmado. “O documentário tem assumido uma importância tão grande, tão definitiva quanto um filme de ficção na nossa cinematografia. Às vezes até se projetando, em alguns casos, de uma forma bem superior, batendo acima dos níveis dos filmes de ficção”. Na visão do cineasta, não foi o documentário brasileiro que melhorou de nível. “Ele sempre foi muito interessante, muito bom. Foi o público que passou a se interessar. Por conta do trabalho das cinematecas, dos cineclubes e do ascenso da classe universitária, do interesse pelo país, daqueles que acompanham a vida política, especialmente”.
Novas Tecnologias
Representante da nova geração de cineastas, Júlia Bacha, que está lançando o filme Budrus, destacou que as tecnologias mais acessíveis popularizaram os documentários. “Todo mundo pode ser um cineasta porque as câmeras ficaram muito baratas”, disse. No entanto, a distribuição destes filmes ainda é um desafio, sobretudo com o aumento da exibição dos filmes na internet. “Isso tornou mais difícil a comercialização, nas salas de cinema, destes documentários”, avalia.
O cineasta Evaldo Mocarzel explicou que o documentário contemporâneo brasileiro e mundial, graças às novas tecnologias digitais e aos diferentes tipos de experimentação de linguagens, está se ficcionalizando. Apropria-se de novas linguagens para tentar decifrar o real contemporâneo cada vez mais virtualizado, globalizado e imagético. “O documentário quer decifrar este oráculo contemporâneo que é a realidade”.
Na avaliação do cineasta Silvio Tendler, o cinema documental no Brasil sempre manteve um público fiel. “O público de documentário é o que assiste na laje, no clube, entre amigos, em uma escola, em uma universidade, e esse público não é contabilizado. E aí, claro que a bilheteria do documentário é pífia, mas isso é um erro de avaliação dos órgãos que normatizam”, explicou. Tendler ressaltou que, enquanto na ficção a estrutura está no roteiro, a estrutura do bom documentário está na arte de saber improvisar para construir um bom filme.
O programa relembrou a trajetória do diretor, roteirista e documentarista Alberto Cavalcanti. Precursor do gênero, Cavalcanti trabalhou na Europa na década de 1920, onde teve projeção na escola documental da França e da Inglaterra. Participou da fundação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e elaborou o anteprojeto para o Instituto Nacional de Cinema (INCE), no governo Vargas, entre outros trabalhos.
Olhar para o passado
Silvio Da-Rin, cineasta e autor de Espelho Partido – tradição e transformação do documentário, explicou que a trajetória do Alberto Cavalcanti é extremamente complexa. “Ele viajou muito jovem para a Europa, fez um curso de cenografia na Suíça. Ele foi para a Europa estudar Arte, acabou na França dando importante contribuição à vanguarda francesa. E fez um filme, La Petit Lilie, que é um dos filmes marcantes do movimento vanguarda do cinema francês”. Para Da-Rin, a obra de Cavalcanti é pouco conhecida e valorizada no Brasil.
No debate ao vivo, Dines questionou se o sucesso do documentário no Brasil se deve ao fracasso dos meios de comunicação, que não conseguem dimensionar a realidade. Eduardo Escorel ponderou que é inegável que na última década se formou uma cultura em torno no cinema documentário, mas há um caráter ilusório neste cenário porque as dificuldades do setor são imensas. “Grande parte desta produção tem problemas sérios para conseguir ser vista. Embora o número total – 850 mil espectadores – seja alto, há muitos filmes sendo vistos por 2 mil, 3 mil pessoas”, disse o cineasta. Para Escorel, é questionável a premissa de que o documentário no Brasil, em geral, esteja passando por um momento tão vibrante. “A capacidade humana de lidar com a realidade é muito frágil e essa talvez seja uma barreira para o cinema documentário”, disse.
Vicente Ferraz ressaltou que, por um lado, há um inegável aumento dos documentários, mas as dificuldades do mercado são grandes. “O documentarista tem que se colocar em relação a isto: ‘será que o meu filme só existe na medida em que eu exibo em uma sala de cinema?’. Claro que a sala de cinema é muito importante. Eu fiquei pensando sobre essa cultura de zapear que a gente tem. A gente está vivendo um grande momento em que você fica o dia todo zapeando entre os canais e a internet. E no cinema, a única maneira de você zapear é você sair no meio da sessão. Para você, como realizador, é muito bom ter este espaço onde o documentário que você fez tem a capacidade de permanecer para o espectador”. Na avaliação do cineasta, a crise na maneira de narrar as histórias no cinema pode ser decorrente deste excesso de informação e da fragmentação do mundo contemporâneo.
Forma e conteúdo
As questões colocadas por Eduardo Coutinho sobre jornalismo e documentário foram discutidas pelos convidados no estúdio. Para Vicente Ferraz, a comercialização e a divulgação dos documentários interferem na forma como eles são recebidos pelo público. Um documentário sobre a Primavera Árabe, que é “o tema do momento”, terá um interesse maior por parte dos espectadores. “Agora, se esse é um grande documentário ou se é como o Coutinho falou, apenas um derivado do telejornalismo, é uma questão mercadológica. Não é uma questão artística e estética”, ponderou. O cineasta contou que um dos filmes que mais marcaram a sua vida tinha como tema central a chuva. Portanto, o público de cada estilo é diferente.
Eduardo Escorel sublinhou que sempre existiram documentários de caráter jornalístico e informativo. “Se desenvolveu uma vertente do cinema documentário que tem um compromisso diferente do compromisso da imprensa. E há um campo muito grande de trabalho neste sentido, de filmes em que o processo de feitura em si é o mais importante, que respondem mais a uma necessidade ou curiosidade do documentarista, a um processo de descoberta durante a própria realização e menos a uma coisa que vem da tradição mais informativa, de caráter mais didático”, avaliou o cineasta. Para Escorel, o documentarista não precisa ensinar. Ele pode se propor a descobrir e a registrar esse processo da descoberta, o que pode gerar documentários interessantes.
Um telespectador do programa questionou se o aumento da produção de documentários reflete uma busca pela realidade do país por parte das plateias. Eduardo Escorel tem dúvidas se o espectador que se interessa por documentários está em busca da realidade do Brasil. “Esse contato com a realidade é muito ingrato e os documentários que fazem mais sucesso, em geral, são um pouco distantes dessa imagem do documentário ligado à crítica social ou política ou à apreensão ou problemas da realidade brasileira. Os espectador que vai à sala de cinema hoje em dia vai muito em busca do entretenimento”, avaliou. Para Vicente Ferraz, a questão da exibição dos documentários em salas de cinema sofre um “gargalo”. Além disso, poucos canais exibem a produção documental, panorama diferente de outros países, onde os filmes de não-ficção têm grande espaço nas grades de emissoras comerciais.
Por Lilia Diniz, para o Observatório da Imprensa
Nenhum comentário:
Postar um comentário