Setright estava certo sobre os navios, mas décadas depois
Trabalhar no artigo de história do Cadillac Seville, que publicamos
nesta edição, trouxe interessantes conclusões sobre as diferenças que
existiam — e ainda existem — entre as expectativas de vários povos pelos
automóveis oferecidos em seu mercado. A relutância da Cadillac em
produzir um carro “compacto” com 5,18 metros de comprimento, o que
equivalia ao tamanho do maior Mercedes-Benz da época, retratava bem como
norte-americanos e europeus enxergavam um mesmo tipo de veículo.
O escritor e jornalista inglês Leonard John Kensell Setright, ou
L.J.K. Setright, costumava dizer que o que estragou o automóvel foi o
navio — ou seja, que os carros seriam melhores se não precisassem ser
exportados para diferentes países e pudessem atender às preferências e
necessidades de um só povo. Sábias palavras! Como os navios e os
negócios que eles levam e trazem são inevitáveis (mais que isso, são
essenciais à existência de muitos fabricantes), o que as empresas podem
fazer é se adaptar, tão bem quanto possível, ao que cada país espera de
seu produto.
E o tamanho dos carros, tema abordado em recente Editorial,
é só o começo. Vias largas e vastos estacionamentos nos Estados Unidos e
na Austrália, ruas e garagens mais apertadas na Europa e ainda mais no
Japão influem de maneira decisiva nos projetos, mas os contrastes vão
bem além — e envolvem itens que nem sempre estão à mostra.
Se é fato que carros grandes requerem motores maiores e mais
potentes, outro fator tem grande influência nesse campo: o preço do
combustível. Mesmo em seus períodos de maior preço, a gasolina sempre
foi relativamente barata nos EUA, enquanto no resto do mundo — à parte
grandes produtores de petróleo, como a Venezuela e o Oriente Médio de
modo geral — seu preço é bem mais elevado. Com isso, mesmo que se trate
do mesmo carro, é comum que o mercado norte-americano receba motores com
maiores cilindrada e potência que o europeu ou o japonês.
Questões de legislação e tributos também afetam esse aspecto. No
Japão existem benefícios a carros com dimensões dentro de certos limites
e motor de até 660 cm³, o que criou um tipo de veículo que praticamente
não encontra aplicação fora do país. Alguns países europeus também já
tiveram diferentes faixas de impostos para motores de cilindrada acima
de certo patamar, como 2.000 cm³ na Itália. Até Ferrari e Maserati
desenvolviam versões específicas de seus esportivos, com propulsores de
2,0 litros, para evitar a alta tributação.
O próprio combustível nem sempre é igual. A Europa tem no diesel um
importante elemento de economia de exercício, pois esse combustível —
ainda que não custe lá bem menos que a gasolina, como aqui — permite
rendimento cerca de 50% superior em quilômetros por litro. Só que o
motor a diesel custa bem mais, sobretudo com os equipamentos necessários
para igualar o desempenho da gasolina (praticamente todo, aplicado hoje
a automóvel, tem turbocompressor) e para reduzir suas emissões poluentes, como os sistemas de aplicação de ureia que agora equipam caminhões no Brasil.
Norte-americanos gostam de um rodar que chega a ser sacolejante; carros europeus e japoneses rodam com maior controle de oscilações, mas também são diversos entre si
O resultado é que o diesel não tem participação tão expressiva fora
do Velho Continente (embora seja bem-aceito em alguns mercados, como na
Argentina) e chega a ser relegado pelos norte-americanos, que não o usam
nem mesmo em picapes para lazer. Só mesmo veículos de trabalho rodam
com diesel nos EUA, a ponto de não existir tal versão para grandes
utilitários esporte como o Ford Explorer — e ficou ainda mais difícil,
nos últimos anos, pela adoção de limites de emissões poluentes mais
severos que os da própria Europa.
Muda o motor, muda a transmissão: é notória a predileção do povo da
terra de Tio Sam pelas caixas de câmbio automáticas, que há décadas são
as mais usadas por lá em automóveis, utilitários ou veículos comerciais.
Já na Europa o manual predomina, embora venha perdendo espaço para os
sistemas automatizados — trânsito congestionado, como se sabe, já
acontece no mundo todo. Até quando o câmbio é de mesmo tipo, os europeus
preferem marchas mais longas, para poupar combustível e trafegar em
estradas em velocidade mais alta sem tanto ruído. E no Japão? O país
nutre um gosto peculiar pela caixa de variação contínua (CVT), que tem participação muito baixa em qualquer outro mercado.
A suspensão também não escapa das preferências locais. Apesar de
nossa noção de que “fora do Brasil não existem buracos e lombadas”, cada
povo tem seu modo de entender como um carro deve se comportar.
Norte-americanos gostam de molas e amortecedores macios, para um rodar
que chega a ser sacolejante em alguns casos (bem menos comum hoje, é
fato). Japoneses usam molas firmes; já europeus costumam adotar
amortecedores firmes e molas nem tanto. No fim das contas, os carros das
duas últimas procedências rodam com maior controle de oscilações que os
primeiros, mas também são diversos entre si.
E a lista de diferenças vai longe. Há o caso dos sistemas de iluminação e sinalização: se a exigência de faróis selados em tamanho-padrão nos EUA ficou no passado, eles ainda requerem o facho simétrico, em vez do assimétrico
usado praticamente em todo o resto do mundo. Luzes de direção traseiras
são vermelhas na América do Norte e em tom âmbar nos demais países.
Repetidores laterais de luzes de direção, lanterna traseira de neblina e
ajuste elétrico (ou automático) do facho dos faróis são exigidos na
Europa; já nos EUA são necessárias luzes de posição nas extremidades
laterais. Ainda em visibilidade, o espelho retrovisor esquerdo convexo que os europeus tanto apreciam é proibido aos norte-americanos.
No interior, revestimentos e equipamentos variam de mercado para
mercado. Nos Estados Unidos e na China os bancos em tom bege são bem
aceitos; já na Europa admite-se uma criatividade em termos de cores que
não é comum em outras regiões. Teto solar ou com grande área envidraçada
faz sucesso em países de clima frio como diversos europeus, um pouco
menos nos EUA e quase nada em locais quentes como a Austrália. O inverso
vale para a faixa degradê no para-brisa.
Até itens de segurança como bolsas infláveis são diferenciados: o
padrão norte-americano é de bolsas mais volumosas, pois considera que o
ocupante possa estar sem cinto, enquanto o sistema europeu toma esse uso
como premissa. E não se podem esquecer as implicações do volante do
lado direito usado por Japão, Inglaterra e cerca de 40 outros países,
que afeta tanto o desenho interno quanto a disposição de órgãos
mecânicos.
E o Brasil em toda essa história?
Rigoroso ou relaxado
Nossa motorização sempre se dividiu entre a influência
norte-americana, nos carros maiores e utilitários, e a europeia nos
automóveis de menor porte — veículos japoneses por aqui, antes da
reabertura das importações em 1990, só mesmo o jipe Toyota Bandeirante.
Embora não fabriquemos mais carros com as características usuais nos
EUA, é lá que nasceu o conceito de utilitário esporte tão difundido hoje
no uso familiar por aqui.
Como nosso mercado atual conta com modelos importados de todos os
tipos e procedências, não se podem estabelecer parâmetros para tudo que
está disponível. Mas, se for considerado o carro de produção local,
temos a predominância europeia com crescente participação asiática — do
Japão e da Coreia do Sul, sobretudo, apesar da iminente chegada dos
chineses nacionalizados.
Assim, o automóvel nacional típico tem influência da Europa na
cilindrada dos motores, mas sem a opção a diesel — pela restrição legal,
não por escolha — e, por outro lado, com o caso único no mundo de
motores flexíveis capazes de rodar com álcool puro. O carro flex
nasceu nos EUA, mas lá roda com álcool em teor máximo de 85%, o que
dispensa o sistema auxiliar de partida a frio. Também exclusivo do
Brasil é o benefício tributário a motores de até 1.000 cm³, que não raro
precisam ser desenvolvidos pelos fabricantes a partir de unidades pouco
maiores à venda no exterior.
O carro flex nasceu nos EUA, mas lá roda com álcool em teor máximo de 85%; também exclusivo do Brasil é o benefício tributário a motores de até 1.000 cm³
Em câmbio, mantivemos o gosto europeu pelas trocas manuais de marcha,
mas isso tem mudado a passos largos com os automáticos mais eficientes e
confiáveis. No que o brasileiro é bem diferente deles (mas não me
incluam nisso) é na preferência por marchas mais curtas, em nome da
agilidade no trânsito nervoso das grandes cidades, do desempenho em
regiões com topografia severa — Belo Horizonte, MG, é exemplo típico —
e, talvez, da preguiça em reduzir da quinta marcha para fazer
ultrapassagens na estrada.
Suspensão é um caso à parte: se o padrão vigente na Europa parece o
mais aceito pelos brasileiros, é fato que os conjuntos de lá precisam
ser revistos em altura, calibração e resistência para obter
comportamento e durabilidade adequados aqui. Nesse aspecto, ganham as
marcas que trazem projetos desenvolvidos para outros mercados menos
desenvolvidos, como Índia, China e leste europeu, onde enfrentam
condições viárias mais próximas das nossas.
No que toca a faróis, lanternas e retrovisores, temos uma legislação
permissiva, que não exige quase nada do que se requer lá fora — e abre
exceções com facilidade, como aos carros trazidos da América do Norte
com luzes de direção vermelhas, embora a lei vigente aqui desde os anos
80 estabeleça a cor âmbar. O mesmo vale para bolsas infláveis, que podem
seguir um ou outro padrão e nem precisam equipar todos os veículos. Já
nossas preferências em acabamento são incompreensíveis, com as manias
pelo interior preto e pelo revestimento de couro em um país tão quente
(mais uma vez, não me incluam nessa).
Relaxada com tantos itens de segurança, porém, nossas normas estão
entre as de meia-dúzia de países (nenhum de vanguarda) que ainda obrigam
cada carro a trazer um extintor de incêndio. Um pesadelo para
fabricantes e importadores, que precisam fazer adaptações não previstas
no projeto para qualquer mercado relevante do planeta.
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