sexta-feira, 20 de abril de 2012

Tem outro?


Viver dá trabalho, mas viver a vida da gente dá mais trabalho ainda. Por isso que todo vizinho é fofoqueiro, e todo mundo é vizinho: viver a vida dos outros é muito melhor.

 
Quando a gente está no aperreio (terminou namoro, pepinaço no trabalho, problema sério na família) não tem coisa melhor do que ver novela. É vida dos outros na veia, porque nem de verdade é. Serve de anestesia, relaxamento total; o sujeito só volta a viver um pouquinho o próprio drama no intervalo comercial.
 
Nos últimos meses tenho trabalhado tanto que não dá tempo de ver novela, pegar um livro ou ir ao cinema: três clássicos endereços da vida alheia. Resultado: sou obrigado a viver minha própria vida 24h por dia. Cansa. Na minha vida, tem um personagem insistente que nunca sai do palco. Mas que coisa, esse cara foi empacar justo comigo. Não podia aparecer alguém mais interessante nos meus dias? Talvez o Batman, o Boni, algum boêmio frasista e carioca? Não. É sempre ele. Flaubert tinha mais sorte: era Madame Bovary. Se ainda eu desconhecesse algum mistério sobre meu personagem, ou se ele tivesse defeitos dos quais eu ainda não houvesse me cansado. Mas, que nada.
 
Tenho estado tanto em cena que perdi a voz. Falo até em pensamento. Tou no banho, tou ouvindo o que eu penso. Tou escrevendo, já sei o que vai sair antes mesmo de os dedos digitarem a frase. Meu Deus, eu sou muito previsível. Oscar Wilde dizia que era tão inteligente que às vezes conversava horas consigo mesmo e não entendia uma só palavra do que dizia. Eu, ao contrário, já sei de tudo o que eu vou falar. Pareço um velho que repete infinitamente as mesmas histórias, inclusive as novas. Haja paciência.
 
Enquanto isso, você aí esbanjando: na boa, lendo estas bobagens sobre a vida de outro. Enquanto eu fico aqui escrevendo sobre… a minha. Já sei. Vou dar uma fugidinha. Vou sair para tomar um cafezinho e fazer cera na esquina para demorar a voltar. Pego um livro bom, ou até um ruim. Vou ouvir música. Ler um poema. Cessar as ondas dessa ressaca de mim. Fazer calar esses meus falares. Colombo, fecha as portas dos teus mares! Fim.
 
Texto de André Laurentino, publicado no jornal O Estado de S.Paulo

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