Concessão à Fifa vai contra a Lei Pelé; liberdade de imprensa é contestada
Cena de Holanda x Brasil durante a Copa de 2010
Após as polêmicas envolvendo a liberação da venda de cervejas dentro dos estádios durante a Copa do Mundo e a criação de uma categoria especial para compra de ingressos (300 mil no total) a um preço que não pode exceder metade do preço da categoria superior para uma mesma partida do Mundial, destinado a estudantes, portadores de deficiência, indígenas e participantes de programa federal de transferência de renda, a Lei Geral da Copa enfrenta mais uma polêmica em seu processo de elaboração na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, criada para este fim específico. Pelo projeto de lei em discussão, de autoria do Poder Executivo e alterado pelo deputado Vicente Cândido (PT), a captação e cessão posterior de imagens, sons e/ou outras formas de expressão durante o evento é de total responsabilidade da Fifa, entidade máxima do futebol mundial e promotora do evento. Com isso, se a proposta for aprovada como está, ela invalidará o previsto artigo 42 da 9.615/1998, popularmente conhecida como Lei Pelé. Pela norma vigente no país, os veículos não detentores dos direitos podem captar imagens de eventos esportivos e do espetáculo para o chamado “flagrante jornalístico”, ou receber as imagens do detentor de direitos local, sem que a exibição exceda 3% da duração total do evento.
Para alguns especialistas em direito constitucional, a lei feriria a Constituição Federal nos artigos 5º e no 220. No primeiro, que trata dos direitos fundamentais, a nova lei iria contra os inciso nono – “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” – e 33º – “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Em relação ao 220, artigo que dispõe sobre comunicação social, a lei geral da Copa feriria o inciso primeiro: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social” e poderia, conforme texto do inciso segundo, ser caracterizada como uma “censura” contra os veículos de comunicação.
“Que é necessário um acordo especial, todos entendemos. Mas tem que respeitar as leis. A proposta entra em conflito com o direito de informar e o de ser informado”, argumenta Dircêo Torrecillas Ramos, presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil). Para Ramos, também professor livre-docente de direito constitucional pela USP, com a liberdade que será dada à Fifa, um dos principais pontos é que os veículos se submeterão ao critério estrito das imagens que a entidade e a empresa contratada por ela (a HBS) produzirem, e não poderão atuar sob as formas que regem a sua postura editorial. “Muitos veículos dão valor a características específicas, como a torcida, sentimento. E ou outros às jogadas mais técnicas. Eles têm que ter este direito de informar, como está previsto na Constituição”. De acordo com o professor, a Fifa pode optar por divulgar apenas o que lhe convier e distorcer conteúdo e informações. “Se não há manifestação, ninguém sabe o que aconteceu. E, se não há permissão de divulgar o que o veículo quer, isso consiste em uma censura”, argumenta, em alusão ao inciso nono do artigo quinto.
Para o advogado do escritório CSMV Advogados e especialista em direito desportivo, Luciano Pupo, o fato de a transmissão da Copa ser tão restritiva realmente chama a atenção. Ele argumenta, porém, que a análise para um evento como a Copa do Mundo de Futebol precisa partir de outra premissa: “O direito desportivo é um ramo do direito onde a internacionalização das normas se faz mais presente. E a adoção destas regras, em alguns casos, acaba por prevalecer frente às próprias normas, leis e regulamentos nacionais”, conceitua. De acordo com Pupo, quando se resolve jogar neste território, não dá para falar em soberania. “Quando se pleiteia ser sede de algum espetáculo internacional, o país tem que saber que precisará abrir mão de algumas coisas”, diz, lembrando que quem quiser participar de futebol tem que se render às normas da Fifa. “Se não quiser, tem a opção de não entrar na disputa. Pode soar injusto, mas eu compreendo como normal”.
O especialista também discorda da ideia de o projeto sofrer a acusação de censura. “Entendo como respeito estrito a normas e regras que emanam de uma entidade à qual a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) está subordinada”. O advogado também descarta a possibilidade de uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) vir a ter sucesso, principalmente pelo forte apelo político envolvido na querela da Copa de 2014.
Entre especialistas em marketing esportivo ouvidos pelo propmark, a opinião é semelhante. Para os profissionais, o país tinha o conhecimento de que precisaria derrubar algumas barreiras em nome dos “benefícios” que um evento do porte da Copa do Mundo de Futebol trará. “O país tem que criar ferramentas que facilitem a vinda do megaevento. Entrar em um acordo que seja bom para todos”, declarou Marcelo Palaia Giannoni, professor de marketing esportivo da ESPM. Para José Carlos Brunoro, presidente do Conselho da BSB (Brunoro Sport Business), quando fizeram acordo com a Fifa, tudo estava colocado. “Agora querem mudar a regra. Se for para partir para a radicalidade, não deveria nem ter entrado”, disse ele, também diretor da CBB (Confederação Brasileira de Basquete) e diretor de futebol da Audax, do Rio de Janeiro e de São Paulo, clube do Grupo Pão de Açúcar. Segundo o executivo, toda essa discussão pode acabar por comprometer a imagem do país como sede de grandes eventos internacionais.
Votação ficou para 2012
Apesar da entrada da Budweiser no Brasil ter sido ocorrência de uma causa natural – a belgo-brasileira Inbev (proprietária da cervejaria Ambev), há pouco mais de três anos, adquiriu a americana Anheuser-Busch, dona da Bud, por cerca de US$ 52 bilhões –, a principal marca de cerveja dos Estados Unidos tem também um motivo estratégico para se fortalecer por aqui. Afinal, ela é um dos patrocinadores da Fifa e, com isso, também da Copa do Mundo de 2014. Mesmo sendo proibida a venda de qualquer tipo de bebida alcoólica dentro dos estádios brasileiros em todo o país, a Fifa nunca teve problemas para ativar e comercializar a marca de seus patrocinadores dentro dos estádios nos Mundiais de futebol – até por se tratar de um evento privado.
No Brasil, apesar de ainda não ter sido votada, a Fifa também não deve encontrar barreiras. Ainda mais agora, que o relator da Comissão Especial da Lei Geral da Copa na Câmara, deputado federal Vicente Cândido, alterou na semana passada o texto do relatório final da lei. No que diz respeito à venda de bebidas – no caso, cervejas –, a alteração prevê a permissão da comercialização dentro dos estádios apenas para os jogos do Mundial. Antes, o relatório previa uma mudança no Estatuto do Torcedor, o que permitiria a venda de bebidas em todos os estádios brasileiros de forma permanente, algo que foi rejeitado de imediato pelo governo federal. Outra alteração foi a retirada dos idosos do grupo que serão beneficiados com ingressos mais baratos. Isso porque a legislação brasileira garante esse direito a eles. Assim, as 300 mil entradas seriam destinadas aos quatro grupos restantes.
Todas essas medidas deviam ter sido votadas na semana passada. Porém, com as alterações realizadas pelo deputado, o “novo” relatório deve ser aprovado em comissão especial na Câmara nesta terça-feira (20) e a votação em plenário, só em 2012 – a partir de fevereiro, quando os parlamentares voltam do recesso. Esse assunto está sendo tratado como prioridade na agenda do Congresso para o próximo ano. Se aprovado na Câmara, vai para o Senado. Não tendo mudanças, segue para a assinatura final da presidente Dilma Roussef.
por Marcos Bonfim
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