segunda-feira, 16 de julho de 2012

FHC critica mídia e marketing eleitoral



Em entrevista exclusiva ao Meio & Mensagem, o ex-presidente avalia os meios de comunicação e revisita as mudanças do setor durante seu governo



Por Eduardo Duarte Zanelato e Rodrigo Manzano

Fernando Henrique Cardoso - longe do poder executivo há quase dez anos, quando entregou o Palácio do Planalto a Lula, seu sucessor - vem se ajustando ao confortável papel de um pensador das questões prementes do futuro da República, entre elas a descriminalização das drogas, sua principal bandeira. Presidente da República entre 1995 e 2002, foi também ministro da Fazenda, das Relações Exteriores e senador. Sociólogo de formação e professor universitário, FHC, 81 anos, atualmente é, além de presidente de honra do PSDB, do qual foi um dos fundadores e do instituto que leva seu nome, chefe da Comissão Global de Política sobre Drogas.

Em 2012, o Plano Real — primeiro dos passos da recente estabilidade econômica e divisão de renda — chegou à maioridade. Neste ano, completa-se, ainda, uma década da abertura parcial dos meios de comunicação brasileiros ao capital estrangeiro. FHC, que ganhou o Prêmio John W. Kluge, da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos na terça-feira 10, confessa que nem tudo seguiu conforme previsto nas mudanças que implementou na área da comunicação, mas reconhece avanços relevantes do setor. Nesta entrevista discute, entre outros temas, o papel do marketing eleitoral, os conteúdos da mídia e a formação da opinião pública.
Meio & Mensagem ›› Qual sua avaliação, como sociólogo, da inclusão da população da base da pirâmide no mercado de consumo?
Fernando Henrique Cardoso ›› Se você olhar, a renda foi crescendo e sendo melhor distribuída depois da estabilização da moeda e desde 1994 tem sido um processo persistente. O Brasil foi o único país em que a diferença entre as rendas diminuiu e continua diminuindo, isso é uma coisa importante. Daí a chamar “nova classe média” é outra questão. Sociologicamente não é verdade. Classe não é só renda: é educação, cultura, uma mesma teia de relacionamento, acesso a níveis de poder. Temos um aumento da renda das famílias, o que leva a um aumento do consumo. Obviamente, com o tempo, isso pode se transformar numa classe, cristalizando-se modos de comportamento e de conduta padronizados que se aproximem mais ou menos daquilo que se chama hoje de classe média. O que houve foi um aumento de renda que levou a um aumento do consumo e é positivo.
M&M ›› Mas esse é um processo longo, não? Em nenhum lugar do mundo tudo isso ocorreu de maneira veloz.
FHC ›› Evidentemente. Aqui até tem sido bastante rápido. Na verdade, em países como Índia, Brasil, China, México e África do Sul ocorre uma expansão da renda, que tem a ver com muita coisa no mundo. A inflação global foi reduzida, tivemos um aumento do valor dos produtos de exportação, das matérias-primas, um período de prosperidade global muito grande — agora parou —, a pobreza reduziu no mundo e o consumo aumentou.
M&M ›› Como a Comissão Global de Política sobre Drogas vem usando ferramentas de comunicação para tratar da questão da descriminalização e eventual regulamentação do uso de drogas, um tema tão sensível e que encontra tanta resistência?
FHC ›› A comissão já está operando. Essa comissão global é composta por pessoas que têm uma penetração ampla, como o Kofi Annan. E a presença de pessoas como ele, Paul Volcker, ex-presidente do Banco Central dos Estados Unidos – este, um senhor mais velho que eu – mostra que não queremos fazer propaganda de alguma coisa, mas estamos interessadas em ajudar a resolver um problema no qual o mundo todo está enrolado e não sai. Como atuar mais? Falando. Criando movimentos, pressão. Não há outro modo, hoje em dia, de sensibilizar lideranças que têm medo de que o eleitorado seja refratário. E o eleitorado é refratário.
M&M ›› O diretor Fernando Grostein Andrade, diretor de Quebrando o Tabu, já afirmou que o Brasil ainda não está preparado para um plebiscito sobre o assunto, por faltar discussão por aqui. Como falar desse tema por aqui?
FHC ››  Aqui existe, ao mesmo tempo, alguns avanços e medo. Conversei, eu mesmo, com a presidente Dilma Rousseff recentemente sobre o tema. Ela esteve nessa reunião da Cúpula das Américas e me perguntou a respeito das consequências para a saúde. A única coisa que interessa, mesmo, é você ampliar os serviços de saúde. Não sou médico. Não sei quais são as consequências. Acho apenas que não dá para tratar essa questão como um caso de polícia. Agora, os outros passos são mais difíceis. E são difíceis mesmo. Se você disser para legalizar, o que vai acontecer? Quem é que vai oferecer a droga? Quem produz? Quem distribui? Não é uma coisa simples. Precisa tirar o foco da mera repressão, descriminalizar, ou seja, não colocar o usuário na cadeia - e fazer campanhas para reduzir o consumo.
M&M ›› A tecnologia pode fazer esse debate emergir da base para o topo?
FHC ›› Sem dúvida, pode fazer e é importante que as pessoas que tomam decisão politica entendam que têm apoio, que essa não é uma sugestão defendida por pessoas esquisitas, mas que tem um respaldo mais amplo. Os novos meios de comunicação são importantes, sobretudo, para inovar. Inovação, em qualquer coisa da vida, é muito difícil. O inovador apanha muito, porque só depois de muito tempo, quando a inovação deu certo, que ele é aplaudido. Maquiavel já dizia: a dificuldade de reformar é que quem vai sofrer com a reforma sabe logo e reclama, quem vai ganhar, não sabe.
M&M ›› Quais são, na sua opinião, as raízes do conservadorismo da opinião pública em relação a este tema?
FHC ›› A opinião pública, em geral, é moralista e tem medo de que essa seja uma maneira de desorganizar a família. E também é ela que sofre. A mãe que tem um filho drogado sabe o que é isso. É uma tragédia. Há esse medo de que qualquer mexida vá piorar a questão, então acredita-se que é necessário reprimir, combater. Imagine a situação de uma família cujo filho rouba para comprar droga. É natural que haja um fechamento em relação a esse tema, porque existe uma sensação de que ampliar a discussão vai aumentar o consumo.
M&M ››  O senhor identifica os meios de comunicação como agentes conservadores na cobertura que fazem sobre drogas e violência?
FHC ›› Certamente são. Os meios de comunicação, como um todo, reproduzem a ideologia predominante. E a ideologia predominante aqui, neste caso, é a de que tem de reprimir. Se você perguntar, no Brasil, se deve ter pena de morte para o traficante, a resposta será que sim. Embora se saiba que a pena de morte não resolve. Mas as pessoas querem, porque têm medo. É preciso entender que, sobretudo para as famílias mais pobres, com o consumo de drogas vem a violência, junto com o criminoso que a vende. O que as pessoas não se dão conta — e sobre o que os meios de comunicação poderiam alertar mais — é que, na prática, no Brasil a droga é livre. Tem por toda parte: há gente vendendo drogas sem controle perto de colégios... Então é melhor ter controle. Ao tornar isso um tabu, as pessoas vão por um caminho que não veem, não querem ver ou fingem que não estão vendo a questão. E é pior.
M&M ›› Qual seu ponto de vista sobre controle ou fiscalização da atuação da mídia?
FHC ›› Controle eu sempre tenho medo. Porque resulta no pior, em censura e tudo mais. O melhor jeito de controlar é ter mais informação, deixar haver mais abertura, e não mais fechamento. Qualquer tentativa de controlar a liberdade de expressão em nome dos bons costumes e da boa sociedade resulta no pior.
M&M ›› O modelo do mercado publicitário, da autorregulamentação, parece uma ­saída para o mercado de mídia?
FHC ›› A autorregulamentação é possível, é algo normal e nada mais do que o conjunto dos meios de comunicação, em acordo, decidir que certas coisas não podem ser feitas. O que não pode é haver uma regulamentação imposta pelo governo. Porque aí vai ter censura. E na questão de mídia é tudo muito difícil. O excesso de recursos públicos na mídia, hoje, é um problema. Você vê isso sobretudo em televisão e rádio, mais ainda nas pequenas, do interior.
M&M ›› A gestão do senhor na Presidência da República é apontada por especialistas do mercado publicitário como início de um novo estilo de tratamento ao investimento público em campanhas publicitárias, com maior profissionalização desta área na esfera federal e adoção de critérios mais técnicos e próximos do que faz a iniciativa privada. O senhor acredita ser possível avançar mais nesta questão?
FHC ›› Nós fizemos um esforço grande para estabelecer parâmetros técnicos no investimento publicitário. Hoje em dia, ninguém está levando isso muito ao pé da letra, também porque o governo está com mais dinheiro e usa esses recursos mais livremente, de uma maneira até preocupante. Aqui só tem uma voz, só um lado fala.
M&M ›› Ao mesmo tempo, o senhor, bem como o presidente Lula e a presidente Dilma, em situações bastante semelhantes, reclamava que parte dos jornalistas ouvia muito mais a oposição do que o próprio governo.
FHC ›› Eu não me queixava disso, não. Sempre tive o entendimento de que a função da mídia é ser crítica, mesmo quando injusta. Até podia reclamar, mas não reclamava aos jornalistas, nem fazia pressão. Acho que não adianta. A imprensa, até certo ponto, é unilateral mesmo, tem que ver o que os outros não estão vendo, antecipar a crítica, exagerar, para então ter alguma visibilidade.
M&M ›› Na sua opinião, existe muita concentração de propriedade da mídia brasileira?

FHC ›› Tem alguma, mas comparando com outros lugares, nem tanto. Aqui você tem uma diversificação de meios de comunicação e a propriedade perdeu o impacto que tinha antes, quando só havia um modo de comunicação, através dos meios formais. Agora você tem outros. É muito difícil combater essa questão. É com diversificação.
M&M ›› Por que é tão difícil alterar o marco regulatório de comunicação?
FHC ›› Porque os interesses são muito grandes. Você sabe que, no Brasil, muitos parlamentares são proprietários (de veículos de mídia). Eu, quando presidente, acabei com uma coisa: o poder do Presidente da República de conceder uma rádio ou televisão. Adiantou? Em parte, porque acabou aquela pletora de parlamentares que, em outra época, ganharam por pressão política. Por outro lado, outras pessoas, por instrumento econômico (conseguem)... É melhor e mais fácil segurar o monopólio econômico do que o político. E esse não é um instrumento de troca de poder.
M&M ›› Um dos pontos do marco regulatório alterado durante seu governo e sancionado pelo senhor foi a abertura do mercado de mídia para o capital estrangeiro. Que avaliação o senhor faz daquele momento e por que isso não produziu o resultado esperado?
FHC ›› Ninguém entra com 30% para botar enfeite no bolo do outro. Mas não sei também se é o caso de se abrir... Hoje isso é muito complicado, muita gente tem acesso direto à mídia estrangeira: por meio da televisão, dos blogs internacionais...
M&M ›› Aquela ideia de soberania nacional e comunicação, portanto...
FHC ›› Fica difícil, fica difícil. A questão principal são os conteúdos e nem tanto o meio em si ou o que se veicula. Deve-se aumentar os conteúdos locais, mas não adianta fazer isso por decreto também. Vai aumentar, está aumentando e precisaria aumentar mais.
M&M ›› Desde a abertura democrática, o marketing vem se tornando uma disciplina cada vez mais utilizada e muito avançada no Brasil, que se tornou, inclusive, uma referência na América Latina. Como o senhor avalia a relação entre marketing e eleição e de que forma isso pode contaminar as práticas políticas?
FHC ›› Acho que nós chegamos aqui a um exagero do marquetismo eleitoral. Hoje os políticos têm medo de dizer o que pensam, dizem o que a pesquisa diz que o povo quer ouvir. Mas a pesquisa nem sempre é bem interpretada. E, por outro lado, a função do líder, a meu ver, não é repetir o que os outros querem, mas tentar convencer os outros. Você passa a ter uma mera política de papagaio. Todos fazem isso, não se tem debate. O discurso fica vazio. A ideia inicial das campanhas na televisão era que o candidato fosse lá falar. Pouco a pouco foi se transformando em telenovela, com toda uma armação para convencer a opinião pública a respeito daquele produto. Isso não é o que se queria na abertura democrática. O que se precisa discutir são valores, as ideias, propostas, e você mesmo, como você é.
M&M ›› Como o senhor lidou com as orientações das suas equipes de marketing nas campanhas de 1994 e 1998?
FHC ›› Era menor naquela época do que é hoje. O marquetismo deveria funcionar no sentido de acentuar as qualidades, as características e as posições do candidato e não fazer do candidato um boneco. Acho que conseguimos certo equilíbrio. Por exemplo: de acordo com as pesquisas da época, em 1994, eu devia dizer que ataria o valor da aposentadoria ao salário mínimo. Isso produziria problemas fiscais complicados. Podia até funcionar (como atrativo de votos), mas eu não falei. A pessoa tem de ter coragem de enfrentar e dizer não. Não sei se estou certo, pode ser que eu esteja errado, mas precisa quebrar essa armadura, esse marquetismo que é caríssimo: o tempo de televisão é pago pelo contribuinte, além da montagem de tudo isso.
M&M ›› Isso envolve, ainda, um problema político muito grande que é a relação entre campanha, contribuição financeira e corrupção.
FHC ›› Vai tudo junto.
M&M ›› O financiamento público resolve essa questão?
FHC ›› Não sei se resolve. Já existe financiamento público, os partidos recebem dinheiro público. Se fosse possível ter controle para garantir que apenas o dinheiro público financie a campanha, talvez. Mas qual será a reação do povo? Ele dirá: “vai tomar do meu para fazer política”. De qualquer maneira já tomam do povo, direta ou indiretamente.
M&M ›› Várias denúncias de corrupção, em todas as regiões do Brasil e em muitos partidos, no PSDB e no PT, inclusive, envolvem elementos muito comuns: agências de propaganda e verbas de comunicação.
FHC ›› É o instrumento, é o modo pelo qual os partidos conseguem coletar recursos.
M&M ›› Mas o financiamento público não ajudaria a tornar essas relações mais transparentes?

FHC ›› Já é transparente, só que não se transparece, porque não se publica isso. Na hora que se recebe deveria já ir para a internet. Tem uma parte do dinheiro que não passa (pela contribuição oficial) e é isso que tem de ser combatido. Existe o caixa dois porque a empresa também tem caixa dois. E, ainda, é uma maneira de desovar recursos e alguns partidos não querem mostrar de onde vem o dinheiro. Não há motivo no Brasil para se ter caixa dois. É ilegal. É uma coisa, realmente, absurda. Com o financiamento público essa prática não vai parar.


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